Ciclo menstrual e ciência do exercício

A LIVE que aconteceu com o Nelson Evencio, sobre ciclo menstrual e treinamento esportivo, abriu um campo para debate do assunto e muitas conexões. VAMOS CONTINUAR FALANDO DISSO!!

Uma das conexões, foi com a Ana Morano, que dividiu comigo a sua dificuldade de realizar estudo com mulheres no campo da fisiologia, só por conta da questão hormonal. Ele dividiu um super conteúdo que eu faço questão de deixar registrado aqui e quem sabe não gere conexões positivos para ela e para outras pessoas quebrarem essa barreira e que a ciência contribua com a performance e conhecimento das atletas. Confira o texto da Ana:

Ciclo menstrual e a Ciência do exercício. Por Ana Elisa von Ah Morano

            Ainda durante a graduação de Educação Física, quando eu já sabia que seguiria na carreira acadêmica, ao me deparar com alguns trabalhos científicos da área, comecei a observar que a maioria dos estudos que envolviam exercício físico eram realizados com homens. Então, passei a questionar o motivo dessa prevalência e logo me explicaram que isso era em razão das variações hormonais do ciclo menstrual da mulher que poderia interferir nos resultados, então era mais fácil trabalhar apenas com o público masculino.

Indignada e insatisfeita com essa resposta, me propus a escrever um projeto para o mestrado com o público feminino. Com o objetivo de investigar as possíveis diferenças e alterações existentes entre as fases do ciclo menstrual e os efeitos no sistema imune em resposta ao exercício de mulheres em idade fértil, a proposta do estudo tinha um delineamento que avaliaria as participantes durante as duas principais fases do ciclo menstrual, folicular e lútea. Apesar da aprovação do Comitê de Ética, faltou liberação de verba para execução da pesquisa (fato que não aconteceu com o projeto que seria feito com os homens). O tempo passou e por fim, tive que desenvolver um outro trabalho para a conclusão do mestrado e mais uma vez, com homens. Da fase do mestrado com o público feminino, da pesquisa que tinha começado a desenvolver, consegui apresentar um trabalho sobre o efeito protetor do sono, sintomas da TPM e nível de atividade física (Figura 1).

Apesar de esse ser meu relato pessoal, ele vai de encontro ao que diz a literatura, uma vez que a pesquisa da ciência do exercício com foco nas mulheres permanece limitada. Em uma busca rápida no Pubmed, contemplando apenas estudos entre 2018 e 2020, é possível encontrar cinco trabalhos (1–5) cuja proposta é incentivar a pesquisa científica na área do exercício físico com mulheres (Figura 2). Dois destes trabalhos são recomendações metodológicas para pesquisa com ciclo menstrual, exercício físico e esporte. Outros dois são estudos de revisão por meta-análise que contemplam o que há na literatura sobre o tema, sendo um com mulheres com ciclo normal e que não fazem uso de remédio contraceptivo e outro com efeitos do contraceptivo. É importante destacar que ambos os estudos de revisão apesar de terem como objetivo explorar as implicações das concentrações hormonais no desempenho do exercício entre as mulheres, eles mostram que os dados da literatura são conflitantes e por isso, falta um consenso a respeito do impacto do ciclo menstrual no desempenho das mulheres no exercício físico. Por fim, o último trabalho é um artigo de opinião em um periódico de fisiologia intitulado “Incluindo mulheres na pesquisa. É necessário e realmente, não é tão difícil de fazer”, ressaltando a importância da investigação científica que incluam mulheres dizendo aos investigadores que eles não podem apenas reunir homens e mulheres em um grupo quando ambos os sexos fazem parte do estudo, ainda que as mudanças ocasionadas pela variação hormonal do ciclo menstrual feminino criem desafios para o desenho experimental, eles argumentam que contemplar tais diferenças é indispensável e um trabalho que valerá o esforço.  

Vale a pena saber mais. O que diz a literatura…

Algumas das distinções fisiológicas entre homens e mulheres são influenciadas pelas diferenças dos processos reprodutivos, que inclui a ovulação e a menstruação e, consequentemente, uma diferenciação nas respostas do sistema imune orientadas principalmente pelas ações hormonais durante o ciclo menstrual (6). 

O ovário produz três classes de esteróides sexuais: estrógenos, progestinas e andrógenos e a produção dos respectivos hormônios sexuais alteram-se de acordo com a atividade ovariana observada nos ciclos menstruais (7). O ciclo menstrual tem em média 28 dias, sendo do primeiro ao 14° dia a fase folicular, caracterizada predominantemente pela elevada produção de estrogênio, e do 15° ao 28° a fase lútea que é caracterizada pela ausência de gravidez e sangramento, neste caso predomina a produção de progesterona (8).

Além da função reprodutiva, a literatura mostra que os hormônios sexuais femininos afetam vários parâmetros cardiovasculares, respiratórios, termorregulatórios e metabólicos, o que corrobora com o fato de existir implicações na fisiologia do exercício, por exemplo, como retenção, alterações na temperatura corporal e metabolismo energético (9).

Em termos gerais, na primeira fase do ciclo menstrual o rendimento físico da mulher é melhor em função da ação do estrogênio, hormônio que propicia força e desempenho. Já na fase lútea, sob ação da progesterona, a mulher sofre retenção de líquido, inchaço e indisposição e, durante a menstruação, o cansaço pode atrapalhar a prática de exercícios físicos (10).

Não é só a disposição ou rendimento físico da mulher que pode sofrer influência do ciclo menstrual, a produção intrínseca de citocinas pró-inflamatórias por monócitos é aumentada após a ovulação (11). Durante a fase lútea, há maiores concentrações plasmáticas de TNF-α, por exemplo. A fase reprodutiva feminina também parece influenciar o metabolismo dos monócitos, uma vez que quando estimulados por endotoxinas, os monócitos na fase lútea aumentam a produção de TNF-α com relação à produção observada no período folicular (12,13). Por outro lado, a literatura evidencia uma relação positiva da IL-6 com o ciclo menstrual, pois alguns estudos indicam queda nas concentrações plasmáticas de IL-6 durante a fase lútea em comparação com a fase folicular, há indícios do papel do estrogênio na produção espontânea de IL-6 (7).

A prática regular de exercício físico é uma importante estratégia documentada na literatura para prevenir e tratar as doenças crônicas (14). O treinamento físico regular é capaz de aumentar a produção de citocinas anti-inflamatórias e diminuir as concentrações de citocinas pró-inflamatórias  (15).

O grupo do Prof. Northoff e colaboradores, em 2008, concluiu que as mulheres na fase lútea mostraram um padrão distinto de regulação gênica em resposta ao exercício, em comparação com as mulheres na fase folicular ou homens. Os voluntários fizeram teste agudo de corrida em esteira com duração de 60 minutos, sendo que as mulheres realizaram o protocolo duas vezes, na fase folicular do ciclo (no dia 10) e na fase no lútea (dia 25). Mulheres na fase lútea mostraram padrão distintamente diferente de regulação gênica em resposta ao exercício, em comparação com as mulheres na fase folicular ou comparadas aos homens, sendo a resposta pró-inflamatória da fase lútea exacerbada após uma hora de exercício. Diante dos achados, o grupo de pesquisadores alemães sugerem que os estudos realizados com mulheres levem em conta as diferenças nas fases do ciclo menstrual, bem como façam controle específico do uso ou não de contraceptivo oral, uma vez que células do sistema imune parecem ser influenciadas pelos hormônios sexuais (16).

Em estudo que determinou a influência do sexo, da fase menstrual e do uso de anticoncepcionais orais nas alterações imunes em resposta ao exercício de endurance (90 minutos de ciclismo a 65% da capacidade aeróbica máxima; as mulheres fizeram o teste por duas vezes: uma durante a fase folicular do ciclo menstrual e outra no período lúteo), Timmons e colaboradores (2005), relataram alterações dependentes do ciclo menstrual e de gênero nas respostas de leucócitos e citocinas induzidas por exercício. Participaram do estudo 11 homens e 12 mulheres de idades e nível de condicionamento físico semelhantes (VO2max Homens = 45±5 mL/kg/min; VO2max mulheres sem contraceptivo = 37±9 mL/kg/min; VO2max mulheres com contraceptivo = 40±6 mL/kg/min), sendo que seis delas faziam uso de contraceptivo oral. A contagem de células do sistema imune induzida pelo exercício e alterações na IL-6 foram semelhantes entre homens e mulheres sem medicação, exceto por maior resposta dos linfócitos em mulheres sem uso de contraceptivo quando comprada aos homens. A alteração induzida pelo exercício na IL-6 foi 80% maior nas mulheres sem remédio durante a fase folicular, porém, foi semelhante entre esses grupos durante fase lútea (17).

 Os resultados encontrados enfatizam a necessidade de controlar o gênero e as diferentes fases do ciclo menstrual feminino, bem como o controle do uso ou não de contraceptivos orais, ou não, ao se elaborar estudos que avaliem o exercício.

Gostou do assunto e quer discutir mais com a Ana Morano?

Entre em contato com ela: Ana Morano

Referências

  1.        Elliott-Sale KJ, McNulty KL, Ansdell P, Goodall S, Hicks KM, Thomas K, et al. The Effects of Oral Contraceptives on Exercise Performance in Women: A Systematic Review and Meta-analysis. Sport Med [Internet]. 2020;(0123456789). Available from: https://doi.org/10.1007/s40279-020-01317-5
  2.        McNulty KL, Elliott-Sale KJ, Dolan E, Swinton PA, Ansdell P, Goodall S, et al. The Effects of Menstrual Cycle Phase on Exercise Performance in Eumenorrheic Women: A Systematic Review and Meta-Analysis. Sport Med [Internet]. 2020;(0123456789). Available from: https://doi.org/10.1007/s40279-020-01319-3
  3.        Sims ST, Heather AK. Myths and Methodologies: Reducing scientific design ambiguity in studies comparing sexes and/or menstrual cycle phases. Exp Physiol. 2018;103(10):1309–17.
  4.        Janse DE Jonge X, Thompson B, Han A. Methodological Recommendations for Menstrual Cycle Research in Sports and Exercise. Med Sci Sports Exerc. 2019;51(12):2610–7.
  5.        Stachenfeld NS. Including women in research. It’s necessary, and really not so hard to do. Exp Physiol. 2018;103(10):1296–7.
  6.        Bolego C, Cignarella A, Staels B, Chinetti-Gbaguidi G. Macrophage function and polarization in cardiovascular disease a role of estrogen signaling? Arterioscler Thromb Vasc Biol. 2013;33(6):1127–34.
  7.        Bouman A, Jan Heineman M, Faas MM. Sex hormones and the immune response in humans. Hum Reprod Update. 2005;11(4):411–23.
  8.        Hicks CS, McLester CN, Esmat TA, McLester JR. A Comparison of Body Composition Across Two Phases of the Menstrual Cycle Utilizing Dual-Energy X-Ray Absorptiometry, Air Displacement Plethysmography, and Bioelectrical Impedance Analysis. Int J Exerc Sci. 2017;10(8):2135–49.
  9.        Constantini NW, Dubnov G, Lebrun CM. The menstrual cycle and sport performance. Clin Sports Med. 2005;24(2):51–82.
  10.      Ross J, Hecksteden A, Fullagar HHK, Meyer T. The effects of menstrual cycle phase on physical performance in female soccer players. PLoS One [Internet]. 2017;12(3):e0173951. Available from: http://journals.plos.org/plosone/article/file?id=10.1371/journal.pone.0173951&type=printable%0Ahttp://dx.plos.org/10.1371/journal.pone.0173951
  11.      Willis C, Morris JM, Danis V, Gallery EDM. Cytokine production by peripheral blood monocytes during the normal human ovulatory menstrual cycle. Hum Reprod [Internet]. 2003;18(6):1173–8. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/12773442
  12.      Brännström M, Fridén BE, Jasper M, Norman RJ. Variations in peripheral blood levels of immunoreactive tumor necrosis factor alpha (TNFalpha) throughout the menstrual cycle and secretion of TNFalpha from the human corpus luteum. Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol. 1999;83(2):213–7.
  13.      Bouman A, Moes H, Heineman MJ, De Leij LFMH, Faas MM. The immune response during the luteal phase of the ovarian cycle: Increasing sensitivity of human monocytes to endotoxin. Fertil Steril. 2001;76(3):555–9.
  14.      Pedersen BK, Brandt C. The role of exercise-induced myokines in muscle homeostasis and the defense against chronic diseases. J Biomed Biotechnol. 2010;2010.
  15.      Pedersen BK. The diseasome of physical inactivity – and the role of myokines in muscle-fat cross talk. J Physiol. 2009;587(23):5559–68.
  16.      Northoff H, Symons S, Zieker D, Schaible E V., Schaf̈er K, Thoma S, et al. Gender- and menstrual phase dependent regulation of inflammatory gene expression in response to aerobic exercise. Exerc Immunol Rev. 2008;14(0):86–103.
  17.      Timmons BW, Hamadeh MJ, Devries MC, Tarnopolsky MA. Influence of gender, menstrual phase, and oral contraceptive use on immunological changes in response to prolonged cycling. J Appl Physiol [Internet]. 2005;99(3):979–85. Available from: http://www.physiology.org/doi/10.1152/japplphysiol.00171.2005

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