O Tour de France é um evento machista. Somos fãs do ciclismo, somos fãs do maior evento de ciclismo do mundo, mas não deixamos de observar a realidade como ela é. O Tour de France ainda é um evento machista.
Segundo o dicionário, machismo está relacionado a todo comportamento que discrimina ou recusa a igualdade de direitos e condições entre homens e mulheres.
O Tour de France é um evento que teve a sua primeira edição em 1903. É historicamente compreensível (mesmo que seja um absurdo) que nos primórdios do evento, já que vivíamos em uma outra era no que diz respeito à igualdade de condições entre homens e mulheres (infelizmente), as mulheres fossem excluídas do evento. Não podemos deixar de compreender que pela realidade da época mulheres não eram cidadãs iguais aos homens, não possuíam os mesmos direitos legalmente constituídos. Porém em 2020 o Tour de France celebra a sua 107ª edição, e no que diz respeito à igualdade de direitos e condições entre homens e mulheres, o evento ainda está bem próximo a 1903.
Durante a história do Tour de France, houveram algumas iniciativas que tentaram produzir um evento feminino nos mesmos moldes que o masculino.
Em 1955, 41 mulheres participaram do Tour de France féminin, uma prova em cinco etapas, no mesmo percurso, mas em menores distancias e como um evento de abertura para o Tour masculino. A mídia e os anunciantes boicotaram o evento. Os jornalistas zombavam das ciclistas mulheres. Foi publicado no jornal L’Equipe, em 1957, artigo que defendia não haver grande volta feminina e que as mulheres deveriam se contentar com o cicloturismo, que era mais adequado às suas limitações físicas. Segundo diz a lenda, jornalistas até tentavam invadir o quarto das atletas a noite para surpreendê-las e fotografá-las na sua intimidade.
Em 1984 a organização do Tour decidiu promover uma versão feminina do evento, o “Tour de France Women” que durou, com este nome, até 1989. Em 1990 o evento mudou de nome e passou a se chamar “Tour of the EEC Women”, tendo sido realizado até 1993. Sempre houve grande dificuldade na captação de recursos para o evento.
Em 1992 foi criado um outro evento feminino, não mais pela organização do Tour masculino, o “Tour Cycliste Feminin”, que usou esse nome até 1998, quando teve que retirar a expressão “Tour” por reivindicação de direitos autorais do Tour de France, passando assim a se chamar “Grande Boucle Féminine Internationale”.
O Grande Boucle Féminine Internationale foi realizado até 2004 num formato que tinha em média de 10 a 15 etapas. As dificuldades para captação de recursos para o evento feminino continuaram os mesmos de sempre, o que levou a redução da quantidade de etapas. Entre 2005 e 2009, quando foi realizada a última edição, o evento tinha em média apenas 5 etapas. O Grande Boucle Féminine Internationale também recebeu uma nota inferior no ranking de classificação (nível de profissionalismo) de provas da UCI – Union Cycliste Internationale. A nota conferida pela UCI ao evento profissional feminino era a última na escala de provas profissionais, sendo abaixo destas apenas as provas para amadores, fator que influenciava significativamente na capacidade de exposição do evento na mídia e consequentemente limitava a captação de verba para a sua realização.
Desde a extinção Grande Boucle Féminine Internationale ciclistas mulheres se organizaram para buscar apoio e viabilizar a realização de um evento feminino que se equiparasse ao Tour de France.
As ciclistas multi campeãs Marianne Vos e Emma Pooley encabeçaram o movimento e criaram um manifesto chamado “Le Tour Entier”. Uma espécie de petição pública reuniu cerca de cem mil assinaturas em prol da igualdade de condições entre homens e mulheres no ciclismo.
Em 2014, fruto do esforço e mobilização do Le Tour Entier, surgiu a “La Course by the Tour de France”, prova de etapa única, organizada pela mesma Empresa que organiza o Tour de France, e realizada geralmente no mesmo percurso e dia da etapa de estreia ou encerramento do Tour masculino.
A La Course, como é conhecida, possui a nota mais alta no ranking de provas profissionais da UCI que, somente em 2016, criou um Word Tour feminino, nos mesmos moldes que o circuito mundial de ciclismo masculino. Longe de atender à expectativa feminina, e à plena igualdade de tratamento entre os sexos no esporte, a prova também é criticada, principalmente por ser realizada em apenas uma etapa, enquanto a prova masculina tem duração de 23 dias.
Em entrevista recente, o presidente da UCI, David Lappartient, mencionou que a ASO (Amaury Sports Organisation) está preparada para realizar, em 2022, uma prova por etapas feminina, que não necessariamente se chamará Tour de France feminino.
Em 2020 as “podium girls”, tradicional dupla feminina anfitriã do pódio do Tour, que entrega os prêmios e dá um clássico beijo duplo no premiado, foi substituída por uma dupla mista. Também devido a pandemia do coronavírus, e as medidas de distanciamento social, o beijo foi excluído do ritual de premiação.
Muitos são os fatores que levam a inexistência de um Tour de France feminino, nos mesmos moldes da prova masculina, mas através da análise histórica do tema, nos salta aos olhos que uma das principais dificuldades é o baixo interesse dos patrocinadores em promover o evento feminino, justificado pela ausência de demanda pelo conteúdo, em comparação ao gigantesco mercado de mídia que rodeia o Tour de France masculino. Infelizmente esta é a realidade de muitos esportes, inclusive do tão popular e rentável futebol, porém a mesma análise nos faz refletir que a capacidade de mudar esta realidade está nas mãos do público, eu e você, que no fim do dia somos, através do que escolhermos consumir, quem decide pela criação de demanda de mídia e consequentemente do mercado que a sustenta.
Na nossa humilde opinião, a história de desigualdade de condições entre sexos não deve ser razão para desvalorização do legado positivo, de promoção do esporte, de um estilo de vida saudável e principalmente da bicicleta, que o Tour de France criou ao longo das suas 107 edições, mas serve de alerta para que todos sejamos mais ativos na busca, consumo e produção de conteúdo para o ciclismo que tenha mulheres como protagonistas, fomentado assim o surgimento de novas atletas, eventos e consolidação do esporte feminino.
Vive le Tour!
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